O Gato Preto (The Black Cat) - parte III


Na noite do dia em que essa ação cruel foi realizada, eu fui acordado de meu sono pelo choro do fogo. As cortinas de minha cama estavam em chamas. A casa inteira ardia. Foi com grande dificuldade que minha esposa, uma empregada, e eu mesmo, conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Minha riqueza mundana foi completamente engolida, e eu me resignei perante o desespero.

Eu estou acima da fraqueza de procurar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou detalhando a cadeia de fatos, e espero não deixar nem um elo imperfeito. No dia após o incêndio, eu visitei as ruínas. As paredes haviam cedido, com exceção de uma. Essa exceção foi encontrada numa parede de um compartimento, não muito espessa, a qual permaneceu próxima ao meio da casa, e contra a qual estava a cabeceira de minha cama. O reboco ali havia resistido muito bem à ação do fogo, um fato ao qual atribuo a sua recente propagação. Próxima a essa parede estava uma densa multidão, e muitas pessoas pareciam examinar uma parte em particular minuciosamente e com atenção ansiosa. As palavras “Estranho!”, “Singular!” e outras expressões similares, aguçaram minha curiosidade. Eu me aproximei e vi, como se houvera sido gravada em baixo-relevo na superfície branca a figura de um gato gigante. A marca tinha uma precisão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda ao redor do pescoço do animal.
Quando vi essa aparição pela primeira vez – pois eu mal podia considerá-la menos que isso – minha surpresa e meu terror foram extremos. Mas uma grave reflexão veio a me ajudar. O gato, eu me recordava, fora pendurado num jardim adjacente a casa. Com o alarme de incêndio esse jardim foi imediatamente invadido pela multidão, e alguém deve ter tirado o gato da árvore e o jogado através da janela, dentro de meu quarto. Isto provavelmente foi feito com a intenção de me acordar de meu sono. A queda das outras paredes comprimiu a vítima de minha crueldade no gesso da parede; tendo a cal, com as chamas e a amônia da carcaça, completado o retrato assim como o vi.

Embora eu tenha assim rapidamente contado com minha razão, senão completamente com minha consciência, à luz do fato que acabei de detalhar, eu tampouco falhei em criar uma impressão profunda sobre minha imaginação. Por meses eu não pude me esconder do fantasma do gato, e durante esse período voltava ao meu espírito esse meio sentimento que parecia, mas não era, remorso. Eu fui longe no meu pesar pela perda do animal, e olhei em volta nos vis antros que agora habitualmente eu frequento à procura de outro animal da mesma espécie, ou de alguma forma de similar aparência, que assim possa suprir o seu lugar.

Uma noite, quando estava sentado meio estupefato num recanto maior do que infâmia, minha atenção foi puxada para algum objeto preto, repousando sobre o topo de um dos imensos tonéis de gim ou de rum, que constituía a principal mobília do apartamento. Eu estava olhando fixamente para o topo desse tonel por alguns minutos, e o que me causou surpresa foi o fato que eu não havia percebido o objeto ali anteriormente. Eu me aproximei dele, e o toquei com minha mão. Era um gato preto – um muito grande – tão grande quanto Pluto, e bem parecido com ele em todos os aspectos, a exceção de um. Pluto não tinha um pelo branco em nenhuma parte de seu corpo; mas esse gato tinha uma larga, embora indefinida, mancha branca, cobrindo quase por inteira a região de seu peito.

Ao meu toque, imediatamente ele acordou, ronronou alto, esfregou-se em minha mão e pareceu deliciado com minha atenção. Essa, então, era a criatura da qual eu estava à procura. Ofereci-me para comprar o gato do senhorio; mas este não fez nenhuma reivindicação por ele – não sabia nada do animal – nunca o tinha visto antes.

Eu continuei meus carinhos, e quando eu me preparava para ir para casa o animal evidenciou uma disposição em me acompanhar. Eu permiti que assim o fizesse, ocasionalmente me inclinando e afagando-o enquanto prosseguia. Quando chegamos à casa, ele se domesticou rapidamente, e se tornou imediatamente o grande favorito de minha esposa.

De minha parte, sem demora encontrei uma antipatia por ele crescendo dentro de mim. Esse era justamente o reverso do que eu havia esperado, mas – eu não sei como ou porquê era – seu evidente carinho por mim que mais me aborrecia e irritava. Vagarosamente esses sentimentos de aborrecimento e irritabilidade tornavam-se amargura e ódio. Eu evitei a criatura; um certo sentimento de vergonha, e a memória de minha atitude de crueldade anterior prevenindo-me de abusar fisicamente dele. Eu, por algumas semanas, não o ataquei ou violentei de outros modos, mas gradualmente – muito gradualmente – eu vim a considerá-lo com repugnância indizível, e a fugir de sua presença odiosa como do sopro de uma peste.

O que se somou, sem dúvida, ao meu ódio da besta foi a descoberta, na manhã seguinte ao dia em que o trouxe para casa, que, como Pluto, ele também era privado de um de seus olhos. Essa circunstância, entretanto, apenas o tornava mais querido para minha mulher, quem, como eu já disse, possuía um alto grau de humanidade de sentimento que uma vez havia sido meu traço distintivo, e a fonte dos meus mais simples e puros prazeres.

Com minha aversão a esse gato, entretanto, sua parcialidade por mim parecia crescer. Seguia meus passos com uma obstinação a qual seria difícil fazer o leitor compreender. Onde fosse que me sentasse, ele agachar-se-ia abaixo de minha cadeira ou pularia sobre meus joelhos, cobrindo-me com seus carinhos repugnantes. Se me levantasse para andar ele meter-se-ia entre meus pés e assim quase me derrubando ao chão, ou, fixando suas longas e afiadas garras em minha roupa, escalando dessa maneira até meu peito. Nessas horas, embora eu desejasse destruí-lo com um golpe, eu ainda era impedido de fazê-lo, parcialmente pela memória de meu crime anterior, mas primordialmente – deixe-me confessar de uma vez – por absoluto pavor do animal.

Esse pavor não era exatamente um medo do mal físico – e ainda eu nem saberia como definir de outra maneira. Estou quase envergonhado de possuir – sim, mesmo nessa cela, eu estou quase envergonhado de possuir – o terror e horror com que o animal me inspirou e que eles tenham sido elevados por uma das mais simples quimeras que seriam possíveis de conceber. Minha mulher chamou minha atenção mais de uma vez para a característica da marca de pelos brancos, da qual eu falei, e a qual constituía a única diferença visível entre a estranha besta e a que eu havia destruído. O leitor irá se lembrar que essa marca, embora grande, estava originalmente muito indefinida, mas vagarosamente – a passos imperceptíveis, e os quais por um longo tempo meu bom senso lutou para rejeitar como imaginativa – tinha agora assumido a distinção rigorosa de um contorno. Era agora a representação de um objeto que me estremece nomear – e por isso eu detestava e tremia, e teria me livrado do monstro que eu desafiei – ele era agora, eu digo, a imagem de uma medonha – de uma coisa pavorosa – de uma Forca! – Ó, fúnebre e terrível máquina do horror e do crime – da agonia e da morte!

E agora eu estava de fato miserável além da mera miséria humana. E uma besta bruta – cujo companheiro eu desdenhosamente destruí – uma besta bruta planejava para mim – para mim, um homem, feito à imagem e semelhança de Deus – uma tão insuportável aflição! Ai de mim! Nem de dia nem à noite sabia eu mais da bênção de descansar! Durante aquele a criatura não me deixava um minuto sozinho; e nessa eu começava a ter sonhos de um medo indizível, para encontrar o sopro quente da coisa sobre minha face, e seu vasto peso – um pesadelo encarnado do qual eu não tinha forças para me livrar – apoiado eternamente sobre meu coração!

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